Ferramentas Pessoais
Você está aqui: Entrada Vozes de Salvador Textos Condições Sociais, Segregação e Violência

Condições Sociais, Segregação e Violência

Inaiá Maria Moreira de Carvalho

Concentrando a população, a produção e a riqueza, as grandes metrópoles brasileiras vem adquirindo uma importância econômica, social e política cada vez mais ampla, mas, ao mesmo tempo, transformando-se no epicentro da nossa crise social e urbana. Essa crise tem se agravado especialmente em algumas dessas cidades, como é o caso de Salvador, a terceira maior capital brasileira, com uma população de 2.675.656 de habitantes em 2010 e o comando de 3.573.973 na sua região metropolitana.

Destacando-se por sua história, por sua beleza e pela riqueza do seu patrimônio e de sua cultura, Salvador também chama a atenção pelo tamanho dos seus problemas sociais. Como se sabe, ao longo da história da cidade esses problemas sempre foram muito grandes e persistentes e, além disso, no período mais recente a capital baiana e sua região foram especialmente penalizadas pelos efeitos negativos das transformações ocorridas na economia brasileira a partir dos anos 1980, ampliando os problemas ocupacionais e as desigualdades sociais, regionais e urbanas.

No ano 2000 quase um quarto da população ocupada de Salvador dedicava-se à prestação de serviços não especializados. De cada 100 trabalhadores, 26 tinham um rendimento médio em todos os trabalhos de até um salário mínimo, 54 de até dois salários, 67 de até três salários e apenas 33 percebiam acima desse valor, devendo ser lembrado que naquele período o valor real do salário mínimo era bem mais reduzido do que hoje. De cada 100 moradores, 30 se encontravam em condições de pobreza e 13 eram indigentes. Além disso, esses ganhos estavam associados a uma imensa desigualdade, pois quando se considera a renda familiar se percebe que os 20% mais pobres ficavam com apenas 1,5% da renda, enquanto os 20% mais ricos se apropriavam de 70% e os 10% mais ricos de 53,5, ou seja, da metade da riqueza total da cidade.

Como os dados do último Censo só foram parcialmente divulgados, não se pode comparar essa realidade com a existente em 2010. Mas se sabe que o quadro econômico e social do Brasil melhorou significativamente a partir de 2004, com a recuperação do crescimento da economia e das oportunidades ocupacionais, a política de valorização do salário mínimo e os efeitos de políticas sociais como o Bolsa Família. Como seria de esperar, Salvador também foi beneficiada por essas transformações.

Mas apesar dessa melhoria, as condições de trabalho e de subsistência de um grande número de moradores continuam a ser preocupantes, e seu quadro social bem mais negativo que em outras cidades brasileiras, como mostram as informações a seguir:


Condições de Ocupação e Renda em Regiões Metropolitanas Selecionadas (2007):

Regiões
Metropolitanas
Taxa de
Desemprego
Aberto
Ocupados na
Informalidade*
Assalariados com
Registro em Carteira
Rendimento
Real Médio
dos Ocupados**
Belo Horizonte 8,8 28,9 44,6 993
Distrito Federal 11,5 29,5 35,3*** 1.537
Porto Alegre 9,7 24,6 46,0 1.036
Recife 12,3 39,5 35,7 666
Salvador 13,8 34,6 40,0 828
São Paulo 10,1 32,7 45,0 1.153


Fonte: Tabulações especiais dos micro dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED.

* Foram considerados na informalidade os empregados assalariados sem registro na carteira de trabalho e os autônomos e empregados domésticos sem contribuição à Previdência Social.

** Estimativa em reais de dezembro de 2007.

*** A situação do Distrito Federal é atípica pela concentração de funcionários públicos na sua população.


Com o aquecimento atual do mercado de trabalho o número de trabalhadores com carteira assinada teve um aumento de 7,8% nos últimos doze meses, associado principalmente ao crescimento das atividades de comércio e serviços e na área da construção civil, aos impactos do programa Minha Casa Minha Vida; o desemprego recuou para 10,2%, o melhor resultado dos últimos dez anos. Mas esse número ainda é muito elevado, penaliza especialmente alguns contingentes sociais (como os jovens, os negros, as mulheres e aqueles dotados de menor escolaridade) e ainda está bem distante não apenas da capital onde essa taxa é mais reduzida (Belo Horizonte, com 4,67%) como da média encontrada entre aquelas pesquisadas pelo IBGE (6,2%).

A precariedade das condições de vida também é mais acentuada em Salvador que em outras capitais brasileiras. A taxa de mortalidade infantil, por exemplo, é bem mais alta que em Recife, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. A taxa de abandono no ensino fundamental, também. A distorção idade/série nos anos finais do ensino fundamental (que mostra o grave problema do atraso escolar entre as nossas crianças e adolescentes) é igualmente mais elevada na nossa capital, conforme os dados a seguir:

Indicadores Sociais em Capitais Selecionadas

Capitais Selecionadas Taxa de Mortalidade Infantil (1) Taxa de Abandono
no Ensino Fundamental (2)
Distorção Idade/Série nos Anos Finais do Ensino
Fundamental (3)
Salvador 16,6  6,1 41,1
Recife 13,7 3,6 38,9
Rio de Janeiro 13,8 2,3 34,6
São Paulo 12,0 1,2 15,3
Porto Alegre 9,7 1,3 34,1


Fontes: 1) MS Pacto da Atenção Básica. 2 e 3) MEC/INEP


Como seria de esperar, essas condições tanto se expressam no espaço como são agravadas pela segregação residencial e pela segmentação urbana.

Utilizando os micro dados do Censo de 2000 e uma metodologia desenvolvida pelo Observatório das Metrópoles, Carvalho e Corso  construíram uma tipologia para analisar os padrões de apropriação do território de Salvador. Esta tipologia mostrou que os espaços superiores e médio superiores (onde se predominavam os grandes empregadores, dirigentes e profissionais de nível superior) se concentram na Orla Atlântica; os espaços médios (onde profissionais de nível superior se misturam principalmente com pequenos empregadores, trabalhadores de escritório e em ocupações de nível técnico) se localizam em boa parte no centro tradicional e em outras áreas de ocupação mais antiga; já os espaços de caráter popular ou popular inferior (onde residem os trabalhadores manuais da indústria e do comércio, prestadores de serviços não qualificados, ambulantes, biscateiros e similares) estão basicamente no Miolo e nos Subúrbios, assim como em alguns enclaves da Orla, como o Nordeste de Amaralina. O mapa que se segue ilustra essa disposição.

Tipologia Sócioespacial Região Metropolitana de Salvador, 2000

Tipologia Sócioespacial Região Metropolitana de Salvador (2000)




Fonte: Carvalho e Pereira (2008). Elaboração dos autores.


 A diferenciação existente entre esses espaços (e entre as condições dos seus moradores) é tão grande que, de uma forma um tanto esquemática, pode-se dizer que Salvador comporta uma “cidade tradicional”, uma “cidade moderna” e uma “cidade precária”.

Na “cidade tradicional” (que se constituiu a partir do centro antigo e do seu entorno, é ocupada principalmente pelas camadas médias e por alguns segmentos populares, e onde se encontram o Pelourinho, o Comércio, Santo Antonio além do Carmo, Tororó, Federação ou Nazaré) o tecido urbano é compacto e tem uma certa homogeneidade; há um boa disponibilidade de bens e serviços mas essa “cidade” vem experimentando uma relativa decadência em termos populacionais e urbanos, e em alguma áreas, o valioso patrimônio histórico de Salvador encontra-se bastante ameaçado.

A “cidade moderna”, onde estão os bairros “nobres” e a população branca e de maior renda, ocupa, a partir do centro, as áreas próximas à Orla Atlântica, estendendo-se na direção do litoral norte até Lauro de Freitas, tendo a Avenida Paralela como uma espécie de “fronteira” com a cidade de composição mais popular. Trata-se de um espaço privilegiado, dotado de uma boa infra-estrutura e de serviços públicos e privados diversificados e mais qualificados, concentrando as atrações turísticas, os equipamentos de lazer e de grande porte, assim como as oportunidades de trabalho e obtenção de renda. Notadamente nas áreas mais azuis do mapa, que podem ser denominadas como a “Grande Barra e a Grande Pituba”.

Já a “cidade precária”, se estende por alguns pequenos espaços da Orla (como o Bairro da Paz e do Nordeste de Amaralina), pelo Miolo e pelos subúrbios ferroviários, chegando as “fronteiras” de Simões Filho e do interior de Lauro de Freitas. É ocupada basicamente pelas camadas populares e pela população negra. Aí o tecido urbano se caracteriza pela dispersão e pela contínua expansão, com o acréscimo de habitações precárias em grande parte auto-construídas, em processo de verticalização em áreas próximas às vias de maior circulação ou mais consolidadas, com um padrão construtivo um pouco melhor e um grande adensamento.

Ainda que de forma diferenciada, manifestações da crise social e urbana vem atingindo todas essas “cidades”, sem poupar sequer as áreas “nobres”, como demonstra a violência registrada na Pituba. Mas, como seria de esperar, é na “cidade precária” que elas estão mais presentes. Nos espaços que a compõem, são reduzidas as oportunidades de trabalho, a renda, a disponibilidade de serviços básicos e as áreas e equipamentos de lazer. Somando-se a uma elevada frequência de jovens entre os seus moradores e à expansão territorializada do tráfico de drogas, isto tem aumentado a conflitividade e a violência.

É claro que a violência não é só um problema de Salvador. Conforme estudos do professor Costa Gomes  no Brasil ela é superior à de países em guerra, com a taxa de homicídios por 100 mil habitantes chegando a 25,2, enquanto ela não vai além de 14,9 na Rússia, 5 nos Estados Unidos e 7,6 na média mundial. Mas na nossa capital os dados mais recentes mostram que ela vem crescendo bastante, chegando a 60,1 e transformando Salvador em uma das capitais mais violentas do país.

A violência vem se concentrando nos espaços da cidade precária, como Narandiba, Periperi, Pau da Lima e Pirajá, vitimando principalmente os jovens negros. Não por acaso trata-se de espaços onde as carências se somam a uma proporção elevada de jovens entre os moradores e onde a freqüência daqueles que não estudam e não trabalham chega a um entre quatro jovens.

Frente à realidade apresentada, não se pode dizer que nos últimos anos a prefeitura venha tendo uma atuação positiva. Além de contribuir para degradar as condições da “cidade moderna”, principalmente pela sua cumplicidade com a ganância imobiliária, o que ela tem feito, por exemplo, para melhorar as condições de mobilidade e transporte, problema que atinge todas as “cidades” e principalmente a cidade “precária”, dificultando bastante, entre outros aspectos, o acesso de seus moradores às oportunidades de trabalho e obtenção de renda? O que ela tem feito para enfrentar o esvaziamento e a degradação de diversos espaços da “cidade tradicional”? como ela tem atuado para reduzir as diferenças e as desigualdades entre as diferentes “cidades”? ou para melhorar a qualidade do ensino fundamental, combatendo o atraso e a evasão escolar que atingem tantas crianças, especialmente na “cidade precária”? no que tange às crianças e adolescentes, aliás, a “realização” mais notável do atual prefeito parece ter sido inviabilizar o bom funcionamento da Cidade Mãe, cujo trabalho é tão relevante e reconhecido...

Por tudo isto, Salvador constitui um grande desafio para candidatos a prefeito que se proponham a deter essa barbárie, melhorando a cidade e as condições de vida dos seus moradores. É claro que questões como o combate à violência não são de responsabilidade direta da prefeitura e o poder local tem limitações, principalmente de ordem financeira. No caso de Salvador eles são bem acentuados, entre outros motivos pela pobreza de sua população e pela localização em municípios vizinhos de boa parte das atividades econômicas mais relevantes da RMS. Não se pode esperar milagres. Mas muito pode ser feito, desde que haja vontade política, compromisso com certos problemas básicos, criatividade e trabalho. E embora ninguém tenha receitas prontas alguns pontos podem ser destacados.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que Salvador não é só a Orla, e que o prefeito deve governar para todas as “cidades”, procurando reduzir suas distâncias e desigualdades. Os problemas de transporte, por exemplo, não se reduzem à Paralela e à parte “nobre” da cidade, como vem insistindo os moradores de Cajazeiras, por eles tão prejudicados, que chegaram a se deslocar para Brasília, para apresentar as suas reivindicações. Além de propiciar melhores instalações físicas para a rede de escolas municipais, é preciso investir na qualidade do ensino, combatendo o atraso e a evasão escolar... afinal, ainda que o aumento da escolaridade não seja suficiente, ele é uma condição necessária para o combate à pobreza e a desigualdade. Um melhor gerenciamento local do Bolsa Família pode ampliar o número de famílias beneficiadas por esse programa em Salvador. E como mostrou a professora Ângela Gordilho na Secretaria de Habitação, a prefeitura também pode atuar na área da habitação de interesse social, articulada com os governos estadual e federal.

Estes são apenas alguns exemplos de prioridades, que certamente serão ampliados com as discussões do nosso próximo Seminário.

Acções do Documento